Osmar estudou a jovem do outro lado da mesa. Bruxas sempre eram bonitas, mas ela era deslumbrante. Parecia jovem demais pra o manto negro bordado com “Jocasta Filha da Lava”. Talvez por isso o tom fosse tão sério ao ler o prontuário:
— Então o senhor está com insônia?
— É. Muito calor. Qualquer ruído, qualquer luz me acorda.
— Certo, Sr. Osmar. E tem tempo que começou?
— Ah, foi no começo do ano. Mas piora a cada mês.
— Piora sempre ou piora e melhora?
— Piora e melhora.
Ela checou o calendário, fez uma breve anotação e continuou:
— Então o senhor nos procurou porque esse mês ficou mais sério.
— Isso. Estou sem dormir há setenta e duas horas.
— Ok. O senhor tem lobisomens na família?
Osmar arregalou os olhos:
— Não que eu saiba!
— Suicídio? Criminosos?
— Tenho um tio que se matou ainda criança. E minha tia-avó era… viúva negra.
A bruxa fitou-o enquanto escrevia, desconfiada:
— O senhor é religioso?
— Legião da Paz Fraternal. Por quê?
— O senhor tem andado irritado?
— Dá pra parar de me chamar de senhor?! – ele falou um mais alto do que gostaria e, envergonhado, baixou o tom e a cabeça – Tenho só vinte e cinco anos!
— Ok. Houve alguma mudança importante nos últimos meses? Finanças, família, trabalho?
— Mudei de chefe.
— E foi positivo?
Ele acenou que não. Ela levantou-se e despiu o manto:
— Tudo bem, senh… desculpe, Osmar. Vamos examiná-lo. Pode por favor tirar a roupa? Isso, deite aqui. Vou analisar cada chakra seu, ok?
E lá foi ela, aura exuberante, pousando os grandes lábios em cada centro de energia dele. Primeiro a testa, depois o pescoço, coração, plexo solar, umbigo e, claro, o púbis. Cavalgou-o por quarenta minutos, concentrada. Ou não tão concentrada: rosnou um bocado e, no fim, o peito dele sangrava. Limpando o suor, Osmar indagou:
— Então, senhora, o que eu tenho?
Ela respirou fundo e jogou mastruz, beladona e arruda no caldeirão repleto de vinho. Acendeu o fogo e sentou-se dentro, em lótus. Ele vestiu-se devagar, aflito pela resposta dela:
— O que você tem é um monstro dentro de você.
Ele socou a mesa:
— Eu NÃO sou lobisomem!
Ela correu os olhos entre ele e a mesa:
— Ainda não. Mas o bicho está quase te rasgando pra sair.
Ele gaguejou:
— Eu… eu vou ter que ser internado?
— Que isso! Olha, eu te passar um remédio, tá bem? Vai ser amargo e dolorido, mas vai resolver. Você vai passar longe da internação.
A um gesto da bruxa, dezenas de cartas de tarô voaram em direção ao caldeirão. Enquanto elas giravam ao redor, ele disparou:
— Tarô?
— Só uma carta!
A um gesto dela, as cartas se juntaram na mesa, menos uma, que pairou em frente ao paciente. Era a de mulher enfiando a mão na garganta de um tigre:
— A força! – a bruxa anunciou.
— Então pra não virar lobisomem… preciso de mais força de vontade?
— Sim e não.
— Como assim?!
A carta da força mergulhou no caldeirão, junto com a bruxa, o mastruz, a beladona, a arruda e o vinho. Ela sorriu como para uma criança:
— Sim, você precisa reencontrar a força de vontade. Mas isso não rola se não fizer as pazes com o monstro em você.
— Tá. Fazer as pazes. – ele suspirou antes de gritar – Como é que faço as pazes com um bicho que só quer matar?!
— Ele tem motivos.
— Sede de sangue?
— Não só. Autopreservação etc.
— Então pra não virar um serial killer tenho que matar tudo que meu monstro interior quiser?
—Não. Só o que te dá vontade de matar.
Então, enquanto ele praguejava mentalmente, a bruxa sorriu e tirou a carta do banho. Dobrou-a e, usando-a como uma colher, encheu um frasco e entregou para ele.
— Tome uma colher de sopa para dormir e volte na semana que vem, OK?
Ele cheirou o frasco e fez uma careta, mas conformou-se. Juntou as coisas e foi para a porta. Parou quando a ouviu:
— Vê se rosna antes de morder, tá bom?
Osmar virou-se desesperado. Ela, já de manto, lia outro prontuário:
— Pode chamar o Antônio pra mim?
Ele ia berrar, mas se conteve. Não, não ia matar a bruxa. Pelo menos não até a semana que vem.
Texto: Osíris Reis
Arte: Lima Neto